Todo mundo ao ler o Senhor dos Anéis a primeira vez, ou ao assistir o primeiro filme da Trilogia Cinematográfica de Peter Jackson, fica intrigado com as palavras de Gandalf diante do Balrog:
Sou um servo do Fogo Secreto, manipulador da Chama de Anor, o Fogo Negro não te valerá , Chama de Udûn. Retorna para as Sombras. Não podes passar,
Ao lerem o Silmarillion ficam cientes de que o Fogo Secreto é a Chama Imperecível contendo o poder criativo de Eru Ilúvatar , que foi colocado por ele, crepitando no centro do Universo, que é Eä, tornando-se o fulcro para a existência material de Tudo o que Existe no nível “abaixo”, porque derivativo e posterior”, de/a Eru e aos Ainur.
Mas o que vem exatamente a ser o Fogo Secreto, e qual a sua conexão exata com Eru Ilúvatar?
Tolkien respondeu essa pergunta para o Professor Clyde Kilby no final dos anos sessenta. No seu livro Tolkien e o Silmarillion, Kilby revela que:
Professor Tolkien falou comigo com algum detalhamento sobre o uso da palavra “sagrado” no Silmarillion. Muito especificamente, ele me disse que “o Fogo Secreto enviado para crepitar no centro do Mundo” no começo era o Espírito Santo
Então, tecnicamente, Tolkien está dizendo que uma porção do Espírito de Deus, é imanente a todas as coisas que existem, sendo a base mantenedora do Cosmo.É uma idéia que passa perto de dar um substrato cristão para a noção panteísta de outras religiões do nosso mundo.
Tolkien reforçou essa idéia quando esclareceu na nota 11 ao Athrabeth Finrod Ah Anddreth publicada em HoME X, Morgoth’s Ring que:
Isso, de fato, já é entrevisto na Ainulindalë, na qual uma referência é feita à chama imperecível. Isso parece significar a atividade criativa de Eru (de alguma forma distinta proveniente dele ou do seu interior) pela qual as coisas podem ter uma existência “real” e independente (muito embora derivativa e criada). A chama imperecível é enviada por Eru, para habitar no coração do mundo, e a partir de então o mundo passa a existir no mesmo plano que os Ainur, e eles podem entrar nele. Mas esse não é de fato o mesmo que a re-entrada de Eru para derrotar Melkor. É ao invés uma referência para o mistério da “autoria”, pela qual o autor, enquanto permanece “de fora” e independente do seu trabalho, também “habita” nele, no seu plano derivativo, abaixo do seu próprio ser, como a fonte e a garantia da sua existência.
Dessa forma o Fogo Secreto corresponde ao que se costuma chamar de Anima Mundi, o princípio motriz da nossa realidade, literalmente, a “Alma do Mundo”. É muito interessante, pois comparar o modo com que Tolkien descreveu o Fogo Secreto na nota acima com a descrição do processo de criação dos Silmarils, as jóias feitas pelo artífice élfico, Fëanor, que constituem o “pomo da discórdia” da principal parte do ciclo mitológico da Primeira Era.
E ele se perguntava como a luz das Árvores, a glória do Reino Abençoado, poderia manter-se imperecível. Começou, então, um trabalho longo e secreto, para o qual recorreu a todo o seuconhecimento, seu poder e sua habilidade sutil. E, ao final de tudo, fez as Silmarils.
Como três magníficas pedras preciosas eram elas na forma. Mas não antes do Fim, quando retornará Fëanor, que pereceu antes que o Sol fosse criado, e agora está sentado nos Palácios da Espera e não surge mais entre seus parentes; somente depois que o Sol passar, e a Lua cair, será conhecido de que substância elas eram feitas. Aparentemente do cristal dos diamantes e, no entanto, mais duras do que ele, de tal modo que nenhuma violência pudesse danificá-las ou quebrá-las no Reino de Arda. Contudo, esse cristal estava para as Silmarils como o corpo para os Filhos de Ilúvatar: a morada do fogo interior, que se encontra dentro dele e, ainda assim, em todas as suas partes; e que é sua vida. E o fogo interior das Silmarils, Fëanor criou a partir dafusão da luz das Árvores de Valinor, que ainda sobrevive nas jóias, embora as Árvores já há muito tenham definhado e não brilhem mais.
A natureza do texto aí em cima sugere que os Silmarils eram uma representação do próprio Universo, a luz capturada das árvores de Valinor era como a brasa do Fogo Secreto , infundindo vida , estando simultaneamente em seu centro e em todas as suas partes. Os Silmarilli acabaram se tornando algo maior até do que seu criador pensava a princípio. Duas passagens do livro explicitam essa noção:
Todos os que moravam em Aman ficaram maravilhados e se deleitavam com a obra de Fëanor.E Varda consagrou as Silmarils, para que dali em diante nenhuma carne mortal, nem mãos impuras, nem nada de mau, pudesse tocá-las, que não se queimasse e murchasse. E Mandos previu que os destinos de Arda, da terra, do mar e do ar estavam dentro delas. O coração deFëanor apegou-se profundamente a essas gemas que ele próprio havia criado.
E Melian não tocou mais nesses assuntos com Galadriel; mas contou ao Rei Thingol tudo o que
ouvira a respeito das Silmarils.
- É uma questão importante - disse ela - na realidade, mais importante do que os próprios noldor conseguem compreender. Pois a Luz de Aman e o destino de Arda estão agora presos a essas gemas, a obra de Fëanor, que já se foi
Os Silmarils são um conceito aproximado com o da Pedra Filosofal. A criação suprema da Alquimia, uma maneira de fazer o microcosmo espelhar o que está na realidade superior macrocósmica. Ao criar os Silmarils, Fëanor doou um pedaço da sua alma, sua potência subcriativa, para formar o receptáculo para a luz combinada de Telperion e Laurelin. Isso explica o “atamento” de seu “coração” às jóias que ele concebera. Ele, talvez inadvertidamente, criou um elo entre ele e as gemas que era um precursor do que Sauron, mais tarde, fez com o Anel do Poder.
Assim os Silmarils eram produto de um ato mágico de criação “alquímica”, juntando um cristal “sintético” criado por Fëanor, a silima, com a luz mesclada das duas árvores de Valinor unidas pelo que pode ser um fragmento da alma de Fëanor , sua potência subcriativa destilada nos objetos. As gemas eram uma forma de miniaturização da “quintessência", da Anima mundi, contendo dentro de si a síntese dos 3 elementos que eram presididos e manipulados pelos principais Valar “masculinos”: Terra ( Aulë) , Ar (Manwë) e Àgua (Ulmo), cada um deles vinculado a uma das divisões dos Eldar em Valinor: os Noldor, os Vanyar e os Teleri.
Esse ato mágico de encadear e “encandear” a Anima Mundi só podia despertar mesmo a cobiça do vala rebelde, Melkor, que , em textos tardios foi explicitamente vinculado ao quarto elemento restante, o Fogo, o elemento que também, não tão coincidentemente assim, parecia estar conectado ao elfo “Espírito de Fogo”. Tanto ele quanto Melkor eram análogos de Prometeu, o titã grego que presenteou o fogo aos mortais, "roubando-o" dos deuses do Olimpo. Alquimistas e inventores “prometeanos” para os quais os fins justificavam os meios e que foram , direta e indiretamente, responsáveis pela Queda do Homem( e/ou Elfos) e o fim de uma “Era de Ouro”.
Do ponto de vista espiritual Fëanor deu à luz e a luz aos Silmarils, fazendo deles o receptáculo imperecível de sua própria essência vital
Dada essa qualidade de representação “fetichista”, simulacro, do Universo, então, simbólica e misticamente, a posse dos Silmarils por Melkor, e o engaste das pedras na Coroa de Ferro ostentada por ele era uma forma de atestar o seu domínio sobre os demais elementos de seus pares, Terra, Ar e Água, tendo aprisionado no interior da Jóia o “quinto elemento”, o Éter, que no caso era a luz pura quintessencial das árvores fundida a um receptáculo material pelo “fogo” alquímico de Fëanor.
Daí essa noção de que os “destinos de Arda estavam agora dentro das Jóias”, eis, também porque, depois do seu resgate de Thangorodrim , cada uma delas acabou “ se perdendo” elas ”encontraram seus antigos lares: uma no ar dos céus,outra no fogo do centro da Terra, e a outra nas profundezas das águas".
Não deixa de ser interessante que um dos livros dos Inklings, o segundo livro de ficção publicado por um dos membros do grupo, Many Dimensions, de Charles Williams, de 1931 , tratava justamente de uma pedra mágica feita da Matéria Primal com que o Mundo foi criado . Seria a pedra mágica da coroa de Salomão, como tendo sido, originalmente, uma gema importante da coroa de Lúcifer ( no livro chamado pelo seu nome muçulmano , Iblis) antes da sua queda.E o texto diz “que a derrota dele não teria sido assegurada até que a pedra caiu de sua cabeça”.Vê-se aí que vários ecos de feitos de Melkor e Sauron nessa passagem parecem evidentes, refletindo a criação da Coroa de Ferro e pressagiando a do Anel do Poder.
Vale lembrar que Melkor, assim como Fëanor, eram, simbólica e metaforicamente, em vários níveis, análogos de Lúcifer como significando o que seu nome é em grego: portadores da Luz e que, originalmente, os Silmarils desempenhavam um papel relativamente pequeno na mitologia do Livro dos Contos Perdidos.
Foi só a partir das versões do Legendarium feitas nos anos 30 que Tolkien realmente passou a enfatizar a importância mítica e temática dos Silmarils dando a eles a função do Sampo no Kalevala como centro da disputa entre os Poderes da Luz e da Escuridão.
É bem possível que a concepção pós anos 30 dos Silmarils refletisse esse romance de Charles Williams e sua possível fonte,uma lenda cabalística do Zohar onde Deus fez cair do céu uma “pedra fundamental” que era o alicerce do Mundo, uma pedra chamada Schethl'ya que foi:
cast by [God] into the abyss, so to form the basis of the world and
give birth thereto. [...] it was like a cubical stone or altar, for
its extremity was concealed in the depth, while its surface or summit
rose above the chaos. It was the central point in the immensity of the
world, the corner-stone, the tried stone, the sure foundation, but
also the stone which the builders rejected [...] It is like the lapis
exilis of the German Graal legend, and of Alchemy according to the
Second Raymund Lully, for it appears to be a slight stone; it is
supposed to have been carried by Aaron when he entered the Holy Place,
and it was held in the hands of David when he desired to contemplate
close at hand the glory of his Master. In a sense it fell from heaven,
like the stone from the crown of Lucifer, and again it was overturned
by the iniquity of man, until Jacob restored it to an upright
position. Solomon was also one of those who restored it, and thereon
he built the Sanctuary [...] the Zoharic myth of creation resides in
the fact that this stone was inscribed with the Divine Name before it
was cast into the abyss." (Holy Kabbalah 228-9)
Mais uma vez Tolkien parece ter criado algo sumamente original e poético em cima de uma diversidade de fontes heterogêneas que , uma vez pesquisadas, ajudam a “lançar luz” sobre o trabalho dele.
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